O Cantinho do meu Pai: onde a ciência ganhava alma e as naus chegavam e partiam
O meu Pai, Manuel Pimenta, destacou-se desde cedo em várias áreas. Na profissão, por ser
uma referência, recebeu a Medalha de Honra da Ordem dos Farmacêuticos; na política, foi um
dos deputados responsáveis pela redação e aprovação da Constituição da República
Portuguesa de 1976 e na cidadania, foi homenageado como Cidadão Honorário pela Câmara
Municipal de Viana do Castelo, pelos notáveis serviços de assistência comunitária e
intervenção social. Do Rotary Club de Viana do Castelo, recebeu o título "Paul Harris", e do
Rotary Club de Bissau, o título de Sócio Honorário, pelas suas generosas contribuições para os
projetos em Cacheu, na Guiné-Bissau: Maternidade, Casa das Mães e Espaço RBC
(Reabilitação com Base Comunitária). Fundou e doou um laboratório de análises clínicas a um
hospital pediátrico em Bissau. Como homenagem, uma rua em Cacheu tem o seu nome.
Faleceu em agosto, deixando um legado marcante e inspirador. Desde a sua partida, tenho
escrito algumas memórias. Esta conta a história do seu Cantinho, o seu porto seguro em
Ponte de Lima, de onde nasciam as ideias que tornavam o mundo num lugar melhor.
O Cantinho do meu Pai ficava bem ali, no epicentro do laboratório de análises
clínicas — um open space repleto de aparelhos de diagnóstico sofisticados,
imponentes e ruidosos. Ia lá todos os dias, religiosamente, habituando-nos à
sua presença tranquila, observadora e silenciosa, como um general a admirar
as suas tropas, no aquartelamento. Também parecia um maestro a reger dali,
com paixão e harmonia, a sua amada orquestra.
Naquele cantinho, tão seu, queimava diariamente muitos neurónios a pensar
como haveria de salvar o mundo, elaborava planos de construção de uma
maternidade ou de uma escola, imaginava um centro comunitário em Cacheu
ou um laboratório-escola em Bissau ou em São Tomé, fazia contas e mais
contas para tornar as análises acessíveis a todos, queimava as pestanas de
tanto ler manuais técnicos, orçamentos de equipamentos, teses, artigos
científicos, jornais, livros (muitos livros!). Sim, porque quem quer salvar o
mundo tem de ter um vasto conhecimento em diversas áreas: ciência, história,
economia social, religião, geopolítica, saúde pública, saúde materno-infantil,
direitos humanos, filantropia e sustentabilidade. E, além disso, uma dose
infinita de compaixão e de coragem. E nisso, o meu Pai era Doutor “Honoris
Causa”.
- “Nela, já leste o Fratelli Tutti do Papa Francisco?” – perguntava, na esperança
de que um dia eu lhe seguisse as pisadas. “
- “Claro que li! Até me alistei como Voluntária da Saúde na JMJ Lisboa 2023.” –
respondia eu, com o orgulho tímido de um recruta que deseja ser admirado
pelo seu general.
Daquele pequeno quartel-general de estilo franciscano, comandava as suas
equipas técnicas, ensinava, empoderava, comparava métodos e tomava
decisões. Tantas decisões saíram daquele Cantinho. Tantas pessoas se
ajudaram, tantos donativos se fizeram, tantas vidas se pouparam.
Dali, o meu Pai assistia com o mesmo entusiasmo à chegada das funcionárias
dos postos de colheitas, carregadas com as malas térmicas, como à nossa
partida para as missões internacionais, cheios de sonhos e vontade. Muitas e
muitas vezes, era ele quem partia para a sua terra amada, pois a sua liderança
era pelo exemplo, pelo arregaçar de mangas — e há decisões que só um
verdadeiro Pai, digo, General pode tomar. Ia, sem bilhete de regresso. Logo se
via. E eu ficava a vê-lo desaparecer ao longe, no aeroporto, imbuído de um
verdadeiro sentido de missão e sem olhar para trás, sem fraquejar. Fraquejar
ou choramingar nas despedidas não era para guerreiros, muito menos para
generais. Esta lição encapotada e subliminar, ajudou-me a manter-me firme na
sua despedida deste mundo, primeiro, lá no hospital, e depois, quando desceu
ao túmulo. Ka bu tchora!
Não há dia, que eu não olhe comovida para o seu Cantinho, onde ainda estão
os óculos, o boné, a máquina de calcular, os folhetos dos aparelhos, as contas
à mão, os jornais, os livros técnicos, as nossas fotografias, os prémios e as
homenagens, que se foram amontoando com o passar dos anos. Ainda o sinto
por lá, a ler o DN online e a observar-nos amistosamente.
Como eu amo este Cantinho, esta minha eterna Ribeira das Naus.
Dra. Manuela Pimenta
Fotos da Guiné-Bissau são da autoria do fotojornalista Leonardo Negrão da Global Imagem