O Cantinho do meu Pai: onde a ciência ganhava alma e as naus chegavam e partiam
Notícia
Publicado em 03/09/2024

O Cantinho do meu Pai: onde a ciência ganhava alma e as naus chegavam e partiam

 

O meu Pai, Manuel Pimenta, destacou-se desde cedo em várias áreas. Na profissão, por ser

uma referência, recebeu a Medalha de Honra da Ordem dos Farmacêuticos; na política, foi um

dos deputados responsáveis pela redação e aprovação da Constituição da República

Portuguesa de 1976 e na cidadania, foi homenageado como Cidadão Honorário pela Câmara

Municipal de Viana do Castelo, pelos notáveis serviços de assistência comunitária e

intervenção social. Do Rotary Club de Viana do Castelo, recebeu o título "Paul Harris", e do

Rotary Club de Bissau, o título de Sócio Honorário, pelas suas generosas contribuições para os

projetos em Cacheu, na Guiné-Bissau: Maternidade, Casa das Mães e Espaço RBC

(Reabilitação com Base Comunitária). Fundou e doou um laboratório de análises clínicas a um

hospital pediátrico em Bissau. Como homenagem, uma rua em Cacheu tem o seu nome.

Faleceu em agosto, deixando um legado marcante e inspirador. Desde a sua partida, tenho

escrito algumas memórias. Esta conta a história do seu Cantinho, o seu porto seguro em

Ponte de Lima, de onde nasciam as ideias que tornavam o mundo num lugar melhor.

O Cantinho do meu Pai ficava bem ali, no epicentro do laboratório de análises

clínicas — um open space repleto de aparelhos de diagnóstico sofisticados,

imponentes e ruidosos. Ia lá todos os dias, religiosamente, habituando-nos à

sua presença tranquila, observadora e silenciosa, como um general a admirar

as suas tropas, no aquartelamento. Também parecia um maestro a reger dali,

com paixão e harmonia, a sua amada orquestra.

Naquele cantinho, tão seu, queimava diariamente muitos neurónios a pensar

como haveria de salvar o mundo, elaborava planos de construção de uma

maternidade ou de uma escola, imaginava um centro comunitário em Cacheu

ou um laboratório-escola em Bissau ou em São Tomé, fazia contas e mais

contas para tornar as análises acessíveis a todos, queimava as pestanas de

tanto ler manuais técnicos, orçamentos de equipamentos, teses, artigos

científicos, jornais, livros (muitos livros!). Sim, porque quem quer salvar o

mundo tem de ter um vasto conhecimento em diversas áreas: ciência, história,

economia social, religião, geopolítica, saúde pública, saúde materno-infantil,

direitos humanos, filantropia e sustentabilidade. E, além disso, uma dose

infinita de compaixão e de coragem. E nisso, o meu Pai era Doutor “Honoris

Causa”.

- “Nela, já leste o Fratelli Tutti do Papa Francisco?” – perguntava, na esperança

de que um dia eu lhe seguisse as pisadas. “

- “Claro que li! Até me alistei como Voluntária da Saúde na JMJ Lisboa 2023.” –

respondia eu, com o orgulho tímido de um recruta que deseja ser admirado

pelo seu general.

Daquele pequeno quartel-general de estilo franciscano, comandava as suas

equipas técnicas, ensinava, empoderava, comparava métodos e tomava

decisões. Tantas decisões saíram daquele Cantinho. Tantas pessoas se

ajudaram, tantos donativos se fizeram, tantas vidas se pouparam.

Dali, o meu Pai assistia com o mesmo entusiasmo à chegada das funcionárias

dos postos de colheitas, carregadas com as malas térmicas, como à nossa

partida para as missões internacionais, cheios de sonhos e vontade. Muitas e

muitas vezes, era ele quem partia para a sua terra amada, pois a sua liderança

era pelo exemplo, pelo arregaçar de mangas — e há decisões que só um

verdadeiro Pai, digo, General pode tomar. Ia, sem bilhete de regresso. Logo se

via. E eu ficava a vê-lo desaparecer ao longe, no aeroporto, imbuído de um

verdadeiro sentido de missão e sem olhar para trás, sem fraquejar. Fraquejar

 

ou choramingar nas despedidas não era para guerreiros, muito menos para

generais. Esta lição encapotada e subliminar, ajudou-me a manter-me firme na

sua despedida deste mundo, primeiro, lá no hospital, e depois, quando desceu

ao túmulo. Ka bu tchora!

Não há dia, que eu não olhe comovida para o seu Cantinho, onde ainda estão

os óculos, o boné, a máquina de calcular, os folhetos dos aparelhos, as contas

à mão, os jornais, os livros técnicos, as nossas fotografias, os prémios e as

homenagens, que se foram amontoando com o passar dos anos. Ainda o sinto

por lá, a ler o DN online e a observar-nos amistosamente.

Como eu amo este Cantinho, esta minha eterna Ribeira das Naus.

 

Dra. Manuela Pimenta


Fotos 
da Guiné-Bissau são da autoria do fotojornalista Leonardo Negrão da Global Imagem


Comentários
Comentário enviado com sucesso!